Saturday, June 9, 2007


JOSÉ RÉGIO . HUMANIDADE E GRANDEZA


Não falemos de saudade pelo Amigo sempre presente — na vida sempre distante sempre presente, na morte sempre presente.
Não falemos de mãos nuas, mundo pobre. É tudo pungente de mais para falar. Talvez ainda, talvez sempre. E palavras, às vezes, são lágrimas que se recusam.
A professora anónima atirada para Portalegre teve um prémio grande, um daqueles prémios pelo qual vale a pena ter vivido — apesar de tudo. Conheceu José Régio pessoalmente. E encontrou para além do Poeta — o que era já tão grande encontro — o Amigo mais belo, mais humano que podia sonhar e querer. E nessa altura era capaz de sonhar e querer muito: era jovem.
Por isso sofria quando me falavam de um homem estranho, esquisito, que se não dava com toda a gente, sabia que sua solidão era dolorida aparência, uma forma de solidariedade: a «chaga do lado a sangrar».
As suas verdades, as suas dúvidas, os seus sonhos não o podiam tornar igual a toda a gente. O leal caminhar dos seus pés descalços não poderia ter a segurança e a paga do caminhar dos pés calçados. Pés que sentiam lama, saibro, o alcatrão quente das cidades, as pedras, o pó das estradas solitárias.
O Homem dos Poemas de Deus e do Diabo, o que afinal não pôde acreditar no Inferno, foi das pessoas mais livres que conheci. Serenamente livre para além do diálogo dramático que foi a sua poesia e a sua vida. A sua humanidade rasgada, feita de compreensão e gentileza. Grandeza.
Era o Homem do céu claro, ao qual, até, fisicamente, o céu dos dias nublados perturbava. De céu claro de luta dramática,
Pois esse Homem estendeu-me as mãos com a delicadeza de quem as não estendia. Ajudou-me a criar dimensões na vida. Com uma amizade vigi­lante, de cálida ternura, sem mácula, há tanto ano. Com espírito gentil e generoso.

O tal homem esquisito, estranho, ainda há pouco, antes de adoecer, mandou dois dese-nhos e um poema manuscrito a um rapazinho do primeiro ano do liceu Camões que gostava de ler os seus versos. Um poema manuscrito na sua bela e clara letra, ilustrado; no próprio embrulho do correio, a direcção amorosamente escrita pela sua mão.
E foi só dizer-lhe: Este ra­pazinho gostava de ter um poema seu, escrito pela sua mão.
É este Régio grande. Régio como o nome que para si tão bem soube escolher dando-se atributo real à sua qualidade de homem do povo, é este Régio com muitas facetas de profunda humanidade, de profunda poesia que ainda está por conhecer. Este homem que acaba de morrer na casa de seus pais, refúgio da Velha Casa. Daquela mãe do retrato, a que lhe escreveu o tal maço de cartas. A casa encostada a um quintal em socalcos, onde cultivava as suas flores. O que queria sempre uma flor, uma única flor na sua jarra, forma de pão. Como o Petit Prince. Uma flor sem inferno. De verdades transparentes e conquistadas.
Flor livre de ideias feitas. Molhada de angústias. Do intenso amor que ainda está por entender na sua obra.
Régio. Democraticamente régio. Apaixonadamente huma­no. Para quem o barro humano tinha as formas livres de uma luta verdadeira. Para quem Deus era grande porque o sa­bia por suas mãos. Humanamente,
E sereno e humilde. Digno na sua Dor, no seu Amor. Poe­sia tangível e livre num frágil corpo de Homem. Pequeno corpo mas, como todos os raros que foram grandes homens, grande de mais para o seu tem­po. O tempo da chaga do lado que ele superou.

MATILDE ROSA ARAÚJO ["Literatura & Arte"/A Capital, 7 de Janeiro de 1970, p. 5]
Traços de distorção na poesia de José Régio

António Manuel Ferreira
Universidade de Aveiro

Em Abril de 1927, Vitorino Nemésio publica, em Coimbra, no jornal republicano académico Gente Nova, um pequeno artigo sobre «dois poetas novíssimos», que merecem a atenção favorável do crítico, porque «se apartam à porfia da mediocridade alçada» (1). Os dois jovens poetas são Branquinho da Fonseca, que havia publicado, em 1926, o seu primeiro livro de versos, singelamente intitulado Poemas, e José Régio, o autor de um livro com um título muito mais ambicioso: Poemas de Deus e do Diabo, publicado igualmente em 1926 (2).
A recensão de Vitorino Nemésio é bastante curiosa, porquanto, ao juntar na mesma apreciação crítica dois livros tão díspares, pretende aduzir justificações que permitam valorizar duas obras esteticamente tão desiguais. Assim, os versos de Branquinho, «pela contextura plácida e a inspiração serena, devem ser só de Deus», ao passo que os de Régio revelam, entre outras coisas, uma nota desoladora: «a convicção de que os poetas são o escárnio da natureza, e de que a verdadeira natureza humana só se realiza com perfeição desde que se dê largas a todas as solicitações e tendências do nosso mundo sensível». Por isso, os poemas de Branquinho são talvez menos originais do que os de Régio, mas «mais vigorosos porque de uma beleza mais humana», havendo, em contrapartida, uma certa «morbidez» em Poemas de Deus e do Diabo, facto que não retira ao livro «muita beleza formal». Apesar de assinalar o carácter morboso de alguns poemas de Régio, Vitorino Nemésio salienta a relevância essencial de Poemas de Deus e do Diabo no panorama da poesia portuguesa dos anos vinte, dizendo, por exemplo, que eles são «um documento humano, e pulsam com uma tendência contemporânea de sistemática estesia, que veio preencher a falta do entusiasmo e do vigor vital de outras eras».
O artigo de Vitorino Nemésio revela, em suma, uma adesão ambivalente à novidade estética dos poemas de José Régio. Essa ambivalência é compreensível e, de certo modo, justificável, porque, na verdade, Poemas de Deus e do Diabo não é um livro reconfortante. Branquinho da Fonseca é, segundo Nemésio, um escritor «instalado na boa doutrina poética por sua serena condição, e pelo ar de saúde que toda a sua inspiração respira, anelante mas não mórbida»; ora, o autor de “Cântico Negro”, dividido entre a beleza intangível de um Deus mudo e «absconditus» e a sedução insinuante das múltiplas faces do Diabo, não quer nem pode eximir-se à tentação de uma respiração mais ampla. Na verdade, a “morbidez” detectável na obra de Régio – não apenas na poesia, mas também nos textos dramáticos, nos contos, nas novelas e nos romances, não esquecendo os desenhos – não é um simples efeito de decadentismo esteticamente superficial, mas corresponde à intenção profunda de compreender o homem na complexidade da sua natureza. Diga-se, de passagem, que o mesmo acontece com o “saudável” Branquinho da Fonseca, não tanto na poesia lírica, mas, de forma muito expressiva, em contos tão exímios como O Barão ou “As Mãos Frias”. Há,
nos dois escritores, a vontade de sondar a alma humana, indo muito além das aparências; e a uma visão em profundidade corresponde necessariamente um discurso compósito, que, sobretudo no caso de Régio, se transforma, não raras vezes, em objecto contemplável, por via de um processo de recorrências, remodelações, metamorfoses semânticas e estilísticas.
José Régio instaura logo em Poemas de Deus e do Diabo um tipo de linguagem poética que se desenvolve de forma luxuriante, nitidamente contrária a uma retórica epigramática e enxuta. Régio é, no entanto, um escritor obsidiado por um núcleo de questões relativamente restrito, cujas directrizes essenciais são definidas no livro inaugural. O trabalho de escrita é, assim, elaborado de forma expansiva, no sentido de uma profundidade que permite desmontar as falácias de uma visão do mundo alicerçada em modelos que restringem e falsificam a complexidade do real. A poesia de José Régio é, nos seus melhores momentos, um documento humano – como salientou Vitorino Nemésio – e, por isso mesmo, o seu discurso afasta-se da simplificação superficialmente optimista e eufórica. Daqui resulta uma estética de claroescuro, havendo, em certas obras, uma nítida tendência para privilegiar os matizes menos luminosos. Por outro lado, o talento de narrador e desenhista influencia o poeta; por esse motivo, muitos poemas têm um andamento narrativo, ou, como diz Eugénio Lisboa, nota-se a «interferência profunda – e, às vezes, até indiscreta – dos dotes do ficcionista e do dramaturgo no território da poesia» (3). Essa interferência delineia pequenos contos em que se destacam figuras cujos contornos consubstanciam uma estética da distorção. O traço do artista plástico confere ao texto poético um carácter densamente pictórico, alicerçado num tipo de visão que distorce os materiais, quer se trate de figuras humanas, de elementos da natureza ou mesmo de sentimentos. Sendo fiel ao real, a palavra do poeta transforma os dados sensitivos, dando forma a um modo de ver que se afasta da reprodução mimética de um realismo delimitado por uma concepção de euforia antropológica.
O alento realista de Régio é reforçado por traços de expressão que enfatizam o lado grotesco dos seres e das coisas, perfazendo um saldo estético, que à falta de melhor denominação, Eduardo Lourenço considera ser de teor para-expressionista (4). Como salienta o mesmo ensaísta, o expressionismo, no «sentido norte-europeu» pressupõe uma cosmovisão que dificilmente se harmoniza com a cultura portuguesa; a exasperação da angústia e do grito não encontra terreno fértil na «praia íntima do lirismo que se espraia do Minho ao Guadiana»; todavia, Eduardo Lourenço fala do «poeta simbolista-expressionista de Poemas de Deus e do Diabo», bem como do dramaturgo obcecado por bobos-anjos e anjos-bobos de expressionístico recorte».
Numa perspectiva diferente, Eunice Ribeiro, ao analisar os desenhos de Régio, integrando-os no contexto da obra do autor, tece algumas considerações teóricas que são facilmente transponíveis para o domínio da poesia. Assim, diz a ensaísta que «as poses crispadas, os corpos contorcidos, caídos ou semi-caídos, os nus volumosos de inflacionado erotismo, o esgar das bocas, os olhos salientes – falam de um desassossego íntimo que se nos afigura muito mais próximo da mundividência e da estética maneiristas do que do expressionismo por vezes citado»(5). Por seu turno, Maria Aliete Galhoz, considera que na poesia de Régio «encontramos um expressionismo que vai a extremos de diversificação, sendo as suas imagens ora líricas, ora retóricas, ora coladas sobre o real mas sugerindo uma apaixonada busca, e, em parte, um pessimismo que atrai o grotesco, a caricatura e o escárnio, que são, a bem dizer, o contraponto de um amor carecente na sua visão do mundo e da vida»(6). Fernando Guimarães, num ensaio intitulado “Poesia e Modernidade: O Caso Português”, põe em destaque a faceta romântica do espírito modernista, fazendo, a certa altura, a seguinte constatação: «A esta matriz romântica seria lícito juntar, relativamente à estética presencista, duas outras: a decadentista, tão visível em alguns poetas que se encontram nas páginas da Presença, e a expressionista. Ressalve-se desde já que seria abusivo falar desta última orientação como se de qualquer movimento literário aparecido entre nós se tratasse.
Mas será, efectivamente, o Expressionismo um caminho mal percorrido pelos nossosescritores? Se for entendido como um estado de espírito ou mera tendência, a resposta não será necessariamente negativa» (7). E ainda na mesma linha de pensamento, José Augusto Seabra concorda com Fernando Guimarães, ao dizer que a «insistência na tónica da literatura como “expressão “ do humano pareceria confirmar uma aproximação, que alguns têm procurado fazer, entre a estética presencista e o expressionismo. No entanto, este é, para o poeta e seus companheiros de geração, mais uma forma de afirmação idiossincrática do que de adesão a um movimento estruturado»(8).
Com a citação autorizada dos autores precedentes não pretendo averiguar se a estética regiana é predominantemente expressionista, para-expressionista ou maneirista, pretendo apenas estruturar uma leitura motivada pelos traços de distorção discerníveis numa parte substancial da poesia do autor de Cântico Suspenso. Ora, a distorção é uma característica definidora tanto do expressionismo como do maneirismo e é igualmente um elemento essencial do grotesco.
Na poesia de José Régio há, com efeito, a construção de uma linha de sentido que põe em relevo a face menos reconfortante da condição humana. Logo no texto inicial de Poemas de Deus e do Diabo as figuras assimiláveis a Cristo e ao Demónio são vistas segundo uma perspectiva deformadora que cria uma imagística fantasmagórica e aterradora. A primeira estrofe do poema começa com um ritmo narrativo, parecendo indicar a continuação de um discurso que já vinha sendo mentalmente elaborado e instaurando um processo de narrativização de que as duas figuras fazem parte como personagens. O núcleo de história que subjaz ao poema é ainda completado pela transformação do “eu lírico” em personagem, que faz conjunto com as duas figuras. E as três personagens são tocadas pela mesma atmosfera de estranhamento que faz oscilar as coordenadas do mundo:

Ora uma noite de luar medonho
(Lembro-me disto como dum sonho)
Alevantou-se um Homem a meu lado,
Todo nu, e desfigurado.(9)

A contemplação do divino corpo, sangrando «devastado», provoca no “eu” sentimentos confusos e desorientados:

Eu prosseguia, todo trémulo e confuso,
Cheio de amor e de terror por esse intruso.
À minha mão direita, ele avançava aereamente,
Com seu ar espectral e transcendente.(10)

No que diz respeito à figura do Diabo, é usado o mesmo processo de intensificação de elementos expressivos que agigantam desmesuradamente pormenores que seriam anódinos num contexto menos sombrio:
É que em meu ombro esquerdo alguém se debruçava,
Alguém que ria um riso que espantava,
Um riso tenebroso, e cheio de atracção,
Com fogo dentro como a boca dum vulcão!
(…)
E tinha pés de cabra, e tinha chifres, tinha pêlos,
E tinha olhos sulfúricos, esfíngicos e belos…
A baba do seu riso escorregava-lhe da boca,
E em todo ele ardia uma lascívia louca.(11)

Uma outra isotopia de distorção grotesca tem que ver com o tratamento do “eu lírico” em termos de fantochização dos traços físicos e das características anímicas, um “eu” que gosta de se exibir «à Cristo», um Cristo naturalmente chagado e sofredor, radicalmente diferente do menino Jesus brincalhão e travesso de Alberto Caeiro (12) ou do Cristo descrucificado de Natália Correia (13). Veja-se, como mero exemplo, esta estrofe do poema “Evasão”, inserto em As Encruzilhadas de Deus:

Lembro-me! Roxo e nu, sentei-me no lajedo,
Quis voltar a chorar, e já não pude.
Neste entretanto, a Lua alvorecia a medo,
E ungiu-me o corpo em chaga como um óleo de virtude.(14)

A construção de uma imagem disfórica do “eu” é tributária de uma concepção do poeta como um ser afastado do espaço gregário, sendo esse afastamento involuntário, mas compensado por um orgulho da diferença, que raras vezes chega a ser convincente, porque a ironia de José Régio volve-se sobre o próprio sujeito, pulverizando as defesas propiciadas pelas declarações de sobranceiro exílio. «A trágica alegria de nada ter» ou a negação da felicidade, em nome de uma liberdade desembaraçada dos bens do mundo não constituem um projecto de construção vital, porque são sintomas de uma carência que não encontra forma de remissão. Há, assim, uma ambivalência de tragicomédia, explicitamente reconhecida, que dissemina a indecisão, a dúvida, a incapacidade de optar por um caminho. O entendimento da poesia como inferno – mesmo sendo um inferno aparentemente vivificador – corre a par de uma imagem do poeta como ser fantochizado, como se pode ver no poema “Os Poetas”, do livro póstumo Colheita da Tarde:

Há certos reis que não têm
Lugar em nenhum reinado.
Para onde vão? De onde vêm?
Vêm de um país perdido, vão para um país sonhado.
As suas mãos abrem gretas:
São mais do que gretas, – chagas.
Riscam co’as unhas pretas
Lodos de pauis viscosos, areias de argênteas plagas.
(…)
Há certos reis que em arenas
De circo e diversões
Fazem rir com suas penas,
Sob máscaras grotescas de palhaços e bufões.(15)

Esta teatralização depreciativa da figura do poeta sofre, na poesia de José Régio, uma gradação que vai das imagens mais suaves até uma violência grotesca que exacerba, pela ironia, um indisfarçável mal-estar que já não é só do sujeito mas também do mundo. No poema “Humorismo a 40.º de Febre”, de Colheita da Tarde, a advertência apaziguadora do título não consegue lenificar a sensação de desconforto provocada por uma autocaricatura irrisória que usa expressões como «histrião de cemitério», «flores de pus», «florões de chagas já lilases», «na face toda em cal uns olhos como abismos»(16).
Numa perspectiva mais declaradamente social, nota-se igualmente um acentuar dos tons da distorção. Como lembra José Augusto Seabra, ao comentar o livro A Chaga do Lado, há na poesia de José Régio um pendor satírico que se «evidencia, com uma acerada incidência no modo de denunciar as disformidades físicas e morais do homem como indivíduo e como ser social, cuja degradação não poupa, não hesitando em caricaturá-lo para melhor o fustigar»(17). Há, assim, a prevalência de uma topografia distópica habitada por seres humilhados, cuja caracterização assume em certos poemas de livros como A Chaga do Lado e Fado, uma tonalidade que se aproxima de um desapiedado abjeccionismo. Note-se, no entanto, que a cosmovisão regiana é essencialmente compassiva. A animalização do ser humano e a sua coisificação grotesca são processos literários e plásticos que se apartam nitidamente de uma estética do mero ludismo formal, embora em outros contextos menos sérios o poeta de compraza com a sua destreza mental e versificatória. No poema “Fado das Ruas sem Sol” (Fado), a distopia é bem visível na seguinte estrofe:

Só nas paredes leprosas,
Tortuosamente empinadas,
Eram pupilas brumosas
As janelas desvidradas.(18)

Muito naturalmente, a morbidez física do espaço influi na degradação socioeconómica das pessoas, e daí a animalização patente em versos como os seguintes:

E o certo é que há centos de anos
Que a miséria nua e crua
Com seus viveiros humanos
Escolhera aquela rua:
Debaixo desses telhados
Se instalara, e a seus viveiros,
– Pais e filhos misturados
Como animais em chiqueiros.(19)

E em “Fado dos Pobres” (Fado), só para dar mais um exemplo, a miséria é vista por um prisma deformador que transforma a figura humana em fantoche patético:

Aquela velha do gato
Põe um quico na cabeça,
Roja um cambado sapato
De fivela desatada
No qual, às vezes, tropeça,
E em seda roxa estafada
A saia em que anda metida
A sua carne sem vida
Nem parece andar vestida,
Parece ir dependurada…(20)

Tanto em Fado como em A Chaga do Lado, são múltiplos os exemplos desta estética da distorção. Várias personagens que se escondem na noite são retratadas à luz crua do traço acerado: as prostitutas, os homens que procuram um amor «sem nome» dominados por uma libido compulsiva e receosa que os empurra para «o abraço nefando» e «o atroz comércio» (“Fado do Amor sem Nome”, Fado)(21); mas também os burgueses exibindo ostensivamente uma riqueza, que no soneto “Tudo-Nada”, de Biografia, é sintetizada da seguinte forma: «Passai!, belas carruagens brasonadas,/Forradas de alcatifas e de roubos»(22).
Na poesia de José Régio há, finalmente, um tecido de oposições, uma oscilação entre o belo e feio, um espírito de dialéctica agónica, que, na maior parte dos livros, ressuma uma vitalidade combativa e contagiante. Sob a égide do oximoro, a «deliciosa tristura» e a «melancólica alegria» desenham uma das muitas faces do homem: uma face sombria é certo, mas, como adverte Eugénio Lisboa, «o pensamento rico, denso, envolvente e provocante» de José Régio é entregue aos seus leitores «iluminado por uma luz clara que, no entanto, não escondia obscuridades e funduras, que eram também suas. Luz e sombra, que compõem uma das obras mais vitais da
nossa literatura»(23).

1 Vitorino Nemésio, «José Régio – “Poemas de Deus e do Diabo” Branquinho da Fonseca – “Poemas”», Gente Nova, Jornal Republicano Académico, Ano I, n.º1, Coimbra, 8 de Abril de 1927.
2 Segundo Eugénio Lisboa, o livro Poemas de Deus e do Diabo não pode ter sido publicado em 1925 , «como tem sido dito, até pelo próprio José Régio», porque «em carta de 4 de Fevereiro de 1926, dirigida a seu pai, Régio informa que os Poemas ainda não saíram devido a demora com uma zincogravura». (Eugénio Lisboa, O Essencial sobre José Régio, Lisboa, Imprensa Nacional – Casa da Moeda, 2001, p. 22).
3 Eugénio Lisboa, op. cit., p. 71.
4 Eduardo Lourenço, «Cultura portuguesa e expressionismo», in A Nau de Ícaro seguido de Imagem e Miragem da Lusofonia, Lisboa, Gradiva, 1999, p. 32.
5 Eunice Ribeiro, Ver. Escrever – José Régio, o texto iluminado, Braga, Universidade do Minho, 1997, p.297.
6 Maria Aliete Galhoz, «Apontamentos às Histórias de Mulheres», in Catorze Ensaios sobre José Régio, Lisboa, Cosmos, 1996, p. 89.
7 Fernando Guimarães, «Poesia e Modernidade: O Caso Português», in O Modernismo Português e a sua Poética, Porto, Lello Editores, 1999, pp. 83-84.
8 José Augusto Seabra, «José Régio, Um Poeta em Estado Místico», in José Régio, Poesia I, Lisboa, Imprensa Nacional-Casa da Moeda, 2001, p. 21.
9 José Régio, Poesia I, Lisboa, Imprensa Nacional-Casa da Moeda, 2001, p. 49.
10 Id., ibid., p. 49.
11 Id., ibid., p. 50.
12 Recorde-se a seguinte passagem do 8.º poema de “O Guardador de Rebanhos”: «Hoje vive na minha aldeia comigo. / É uma criança bonita de riso e natural. / Limpa o nariz ao braço direito, / Chapinha nas pôças de água, / Colhe as flores e gosta delas e esquece-as. / Atira pedras aos burros, / Rouba a fruta dos pomares / e foge a chorar e a gritar dos cães». (Fernando Pessoa, Poemas Completos de Alberto Caeiro, Recolha, transcrição e notas de Teresa Sobral Cunha, Lisboa, Editorial Presença, 1994, p. 54).
13 Vd., por exemplo, o poema “A Festa da Descrucificação” inserto em O Armistício (1985): «(…) Ó friorento Cristo atraiçoado / Pelo culto que te usurpa a leda fala! / Pois no caudal dos deuses és o facho / De uma meiga alegria que faltava. // Vieste para beber as nossas lágrimas / Com o mesmo amor com que bebias vinho, / Campos humildes, ó deus plebeu, lavravas / E eras nas bodas campestre bailarino, // Doce derriço das samaritanas, / Consolação de corações esquecidos, / Companheiro gentil de putas santas, / Irmão de adúlteras, estrela dos vadios». (Natália Correia, O Sol nas Noites e o Luar nos Dias II, Lisboa, Círculo de Leitores, 1993, p. 227).
14 José Régio, op. cit., p. 262.
15 José Régio, Poesia II, Lisboa, Imprensa Nacional-Casa da Moeda, 2001, pp. 404-405.
16 Id., ibid., pp.334-335.
17 José Augusto Seabra, art. cit., p. 31.
18 José Régio, Poesia I, p. 382.
19 Id., ibid., p. 384.
20 Id., ibid., p. 377.
21 Id., ibid., pp. 408-412.
22 Id., ibid., p. 137.
23 Eugénio Lisboa, op. cit., p. 89.